Análises Jurisprudenciais de Direito Administrativo II
Martim Belo - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
(Processo nº 0787/10, 2ª Subsecção do CA, 06-09-2011 in https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/aa17f1476d86187580257909003153f2?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1)
O Acórdão que me proponho a analisar de seguida incide sobre a matéria da audiência prévia, que se enquadra no procedimento administrativo, neste caso, em relação aos atos administrativos, sendo uma das fases mais importantes do mesmo.
Para a estruturação da minha análise, decidi, inicialmente, sumariar as alegações das partes e apresentar a decisão do STA, abordando, seguidamente, os aspetos teóricos mais relevantes.
No dia 12 de outubro de 2010, o Recorrente A interpôs recurso no Supremo Tribunal Administrativo (STA), após lhe ter sido negado provimento ao recurso interposto no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa (TAFL) em relação à impugnação da deliberação da Câmara Municipal de Portimão (CMP), de 21 de fevereiro de 1995, que reconheceu a caducidade do alvará de loteamento nº5/83, pelo facto das infraestruturas não terem sido concluídas no prazo determinado.
A alegou que o ato administrativo em questão padecia de vício de forma, por preterição de formalidades, no caso, falta de audiência prévia, devendo ser anulado nos termos do artigo 135.º do CPA (versão anterior), por violação do nº1 do artigo 100.º do CPA (versão anterior), por o ter prejudicado.
Para além disso, alegou que os factos dados como verificados não sustentam a caducidade do alvará de loteamento em questão, pelo que a decisão do TAFL, baseada na teoria da "desvalorização do vício formal", assente no princípio do aproveitamento dos atos administrativos, a partir da qual se mantêm válidos os atos que, apesar de incumprirem com uma formalidade procedimental, em face da disciplina aplicável, não poderiam ter conteúdo e sentido diverso, não teria fundamentação, já que não ficou provado com certeza que as obras não se encontrariam executadas e concluídas na sua totalidade.
A Recorrida, CMP, contra-alegou que a matéria de facto permitia concluir que as obras em causa não se encontravam executadas e concluídas na totalidade, à data do término do prazo, o que foi determinado pelo Departamento da CMP em 19 de janeiro de 1995, levando à caducidade do alvará, deliberada pela CMP em 21 de fevereiro do mesmo ano, nos termos do artigo 24º, nº1, alínea c) e nº 3 do Decreto-Lei 289/73. No fundo, contra-alegou que se verificava uma das situações previstas no artigo 103.º do CPA (versão anterior), que permitiriam não proceder à audiência do interessado.
O STA, quanto à natureza dos factos alegados e contra-alegados, ou seja, a verificação ou não verificação da conclusão ou inconclusão da construção das infraestruturas, considerou que a matéria não estava provada, tendo, com base nisso, procedendo ao apuramento da alegada violação da formalidade em questão e, consequentemente, das consequências aplicáveis.
Quanto à falta de audiência prévia, já havia sido reconhecida na sentença recorrida, tendo sido considerado que a matéria de facto não integrava nenhuma das situações de inexistência ou dispensa de audiência prévia, previstas no 103.º do CPA (versão anterior).
Porém, ainda que a preterição de formalidade essencial do procedimento do ato praticado determine a sua invalidade, o entendimento do TAFL foi o de considerar que, pela natureza do vício verificado, o vício deveria ser desvalorizado. Em suma, o TAFL entendeu que, tendo em conta os pressupostos em que o ato assentou, não poderia ter um sentido diferente daquele que teve, caso se tivesse verificado a audiência prévia do Recorrente, por aplicação do Decreto-Lei em cima mencionado, vigorando o princípio do aproveitamento dos atos administrativos.
O STA teve outro entendimento. Considerando que este ato administrativo era um ato ablativo, ou seja, que suprime, comprime ou retira direitos, e mencionando o Acórdão de 22 de junho de 2004 do STA, entendeu que, neste tipo de situações, mesmo que haja um juízo de prognose em que se possa afirmar que o ato irá necessariamente no mesmo sentido, não se deverá aplicar automaticamente o princípio do aproveitamento dos atos administrativos.
Em causa, segundo o STA, está a garantia da segurança quanto ao conteúdo decisório do ato administrativo e a garantia da tomada de decisões justas, proporcionais e que contém com a participação dos interessados, devendo, especialmente nas situações em que estão em causa atos ablativos, ser o procedimento cumprido com verificação de todas as formalidades, já que não estava em causa nenhuma das situações do artigo 103.º do CPA (versão anterior).
Ora, como anteriormente descrito, o Recorrente alegou a falta de certeza das factualidades descritas pela CMP, sobre as quais assentou o ato administrativo, tendo o STA concordado com esta alegação, concluindo que a decisão poderia ter sido diferente se o interessado tivesse sido ouvido em sede de audiência prévia, pelo que seria imprescindível que esta se tivesse verificado.
Assim, o STA decidiu, em 6 de setembro de 2011, que o ato administrativo em causa, ao ser praticado sem respeitar o artigo 100.º do CPA (versão anterior), violou este preceito, pelo que deveria ser anulado, dando provimento ao recurso em questão e revogando a sentença recorrida.
Considerando concluída a sumarização do Acórdão, passo agora para uma breve exposição acerca dos pontos mais importantes da matéria relacionada com o direito da audiência prévia dos interessados.
O direito da audiência prévia dos interessados é a forma mais importante de manifestação do princípio da participação dos particulares na formação de decisões que os afetem, que se encontra consagrado constitucionalmente no artigo 267.º, nº5 e legalmente no artigo 12.º do CPA.
Este é um princípio que procura assegurar, essencialmente, a defesa dos interesses dos particulares, garantindo uma tomada de decisões o mais esclarecidas possíveis por parte da Administração Pública.
Incindindo especificamente sobre a audiência prévia dos interessados em relação ao procedimento do ato administrativo, esta encontra-se prevista nos artigos 121.º e seguintes do CPA.
A audiência prévia é considera uma formalidade do procedimento do ato administrativo, ou seja, um trâmite "que a lei manda observar com vista a garantir a correta formação da decisão administrativa ou o respeito pelas posições jurídicas subjetivas dos particulares", segundo Freitas do Amaral, que é considerada como sendo essencial para a sua validade, tal como qualquer outra formalidade que o ato administrativo deva seguir, o que resulta de um princípio geral da nossa ordem jurídica.
Fora as situações expressamente previstas no artigo 124.º do CPA, a audiência dos interessados, considerados como tal os particulares previstos no artigo 68.º do CPA, é insuprível, ou seja, tem de ser sempre verificada, porque tem de ter lugar no momento em que a lei exige que seja observada, já que num momento posterior à emissão do ato não faria sentido.
Não se verificando a formalidade em questão, encontramo-nos perante um ato administrativo que é ilegal, consubstanciando-se um vício de forma em sentido lato/procedimental, isto é, uma preterição de uma formalidade essencial, que, por ser anterior à prática do ato, produz sempre ilegalidade.
Face a esta ilegalidade, cabe determinar qual a forma de invalidade a aplicar a atos administrativos que não tenham sido precedidos de uma audiência prévia dos interessados, sendo que, em relação ao princípio da participação, de que decorre esta formalidade, a doutrina não é unânime.
O professor Freitas do Amaral, entre outros, defende que se deve aplicar a anulabilidade, tal como ocorreu no Acórdão analisado, prevista no artigo 163.º do CPA. Pelo contrário, o professor Vasco Pereira da Silva afirma que o desrespeito deste princípio deve ter como consequência a nulidade, que encontra regime no artigo 162.º do CPA.
Em sentido contrário, surge o princípio do aproveitamento dos atos administrativos, que determina que o ato que consubstanciou a violação de uma formalidade é meramente irregular, consequentemente não afetando a produção dos seus efeitos jurídicos. Segundo as construções doutrinárias e jurisprudenciais, este aproveitamento pode ocorrer por duas vias: a degradação das formalidades essenciais em não essenciais, isto é, os casos em que se demonstra que a finalidade exigida com a formalidade preterida foi alcançada, sendo neste caso a proteção do interesse do particular; e a desvalorização dos vícios formais, que pode ocorrer em casos em que o ato praticado foi o ato devido em face da disciplina aplicável, pelo que não poderia, mesmo se verificada a formalidade, ter conteúdo ou sentido diverso daquele que teve.
Finda a exposição e após a análise do Acórdão, é possível concluir que o direito à audiência prévia dos interessados, manifestação mais importante do princípio constitucionalmente consagrado da participação dos particulares nos procedimentos de decisão da Administração Pública, é profundamente valorizado no nosso ordenamento jurídico.
Com efeito, aquilo a que assistimos, tanto através da interpretação do regime aplicável como da leitura do Acórdão analisado, é uma preocupação muito grande pela garantia do respeito por todas as formalidades procedimentais do ato administrativo, com especial relevo para a analisada, o que espelha o equilíbrio que o legislador impõe à Administração entre a persecução do interesse público e dos fins a que está adstrita, e o respeito pelo interesse e direitos dos particulares, que resulta da mudança do paradigma administrativo em Portugal, em que o particular passou a adquirir direitos subjetivos e possibilidade de intervir nas decisões da Administração, não sendo mais visto como um "administrado", e em que a Administração Público passou a estar vinculada ao princípio da legalidade e a todos os outros princípios previstos na Constituição e no Código de Procedimento Administrativo, tendo de atuar em conformidade com as disposições normativas, sob pena da invalidade dos seus atos.
Martim Belo
6 de abril de 2024
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
(Processo nº 05602/01, Secção Contencioso Administrativo, 29/04/2005 in https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/372a3342fd3a002c80256ff6004c5f59?OpenDocument)
O Acórdão que analisarei incide sobre a matéria dos princípios norteadores da Administração, nomeadamente o princípio da imparcialidade, e sobre a matéria relativa ao recurso hierárquico.
De forma a dividir a análise, primeiramente, irei sumarizar o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul e, seguidamente, expor e relacionar alguns aspetos teóricos que considerei relevantes.
O Recorrente interpôs recurso contencioso de anulação no Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) do despacho do, à data, Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, através do qual lhe foi negado provimento ao recurso hierárquico que interpôs relativamente ao despacho de 04/10/2000, do Diretor Regional da Direção Regional de Agricultura da Beira Regional, referente aos resultados do concurso no qual participou.
Para o efeito, alegou que o júri do concurso em questão violou a lei, porque promoveu alterações ao critério de seleção dos candidatos depois de estar na posse e conhecimento dos elementos relevantes da candidatura de cada particular, bem como não fundamentou, de forma clara e precisa, as decisões tomadas, contrariando, desta forma, o disposto nos artigos 5.º, número 2, alínea b), do DL 204/98, 6.º e 6.º A do Código de Procedimento Administrativo (na sua versão anterior às alterações de 2015), correspondendo à violação dos princípios da imparcialidade, justiça e boa fé, e o artigo 266.º, número 2 da Constituição. Assim, a lista de classificação do concurso em questão deveria ser anulada, tal como todos os atos do concurso após a sua abertura, sendo o procedimento repetido.
A autoridade recorrida contra-alegou, afirmando que os critérios de apuramento e ponderação do item "formação profissional" foram publicitados em momento anterior ao da apresentação das candidaturas, tendo sindo a matéria de facto resultante da ata nº4 um mero esclarecimento das entidades que teriam competência para certificar as ações de formação, que seriam apenas os serviços das Direções-Gerais que possam formar funcionários, não alterando os critérios de ponderação dos elementos do item em questão.
Em relação à matéria de facto, soube-se que, pela Ordem do Serviço nº15/2000, de 26/04/2000, da Direção Regional da Agricultura da Beira Litoral, foi aberto concurso interno para preenchimento de 57 lugares de Técnico Especialista da Carreira de Engenheiro Técnico Agrário, resultando dos pontos 8 e 10.2 da Ordem de Serviço que o requerimento de admissão deveria ser acompanhado do CV, onde constasse, nomeadamente, a formação profissional do particular, devidamente comprovada através de documento autêntico ou autenticado, sendo utilizada como método de seleção a avaliação curricular, que teria em conta, entre outros elementos, a formação profissional dos concorrentes.
No dia 05/05/2000, consta da Ata nº1 que o júri se reuniu, pela primeira vez, para definir os critérios de avaliação e ponderação da avaliação curricular, bem como o sistema de classificação do concurso, sendo considerados fatores como a formação profissional, com destaque para as ações de formação e aperfeiçoamento profissional.
Da Ata nº2 consta que, no dia 19/05/2000, o júri se reuniu e deu início à apreciação dos elementos e requisitos das candidaturas dos concorrentes, incluindo do Recorrente, que acabou por ser admitido no concurso, estando, por isso, na posse dos elementos que faziam parte do Curriculum Vitae de cada um e que seriam posteriormente utilizados para determinar a classificação.
Da Ata nº3 consta que, em 31/05/2000, o júri se reuniu para avaliar que tipo de formação profissional seria passível de pontuação no item "formação profissional" para efeitos da classificação final, determinando que não se aceitariam as declarações de formação profissional emitidas por dirigentes das Direções Regionais da Agricultura que não tivessem competência para tal, admitindo apenas as atestadas por Diretores Regionais ou seus representantes legais, pelas Divisões de Qualificação Profissional ou pelas Divisões de Recursos Humanos.
No dia 14/07/2000, o júri conclui o trabalho de apuramento de resultados, tendo em conta os critérios determinados na Ata nº1, de acordo com o estabelecido no ponto 10 da Ordem, não admitindo as formações profissionais tal como aprovado anteriormente, o que resultou na colocação do Recorrente na 82º posição da lista de classificação.
O Recorrente interpôs recurso hierárquico do despacho de homologação da lista de classificação final, tendo sido o recurso indeferido pelo despacho de 01/02/2001, por concordar com a Informação nº27/2001, da auditoria jurídica do MADRP.
O TCAS, ponderando as alegações, contra-alegações e a matéria de facto, entendeu que, tendo sido definidos os critérios de ponderação da avaliação curricular na data da Ata nº1, o que foi feito na data da Ata nº3 foi o estabelecimento de novos critérios de avaliação e ponderação do item "formação profissional", apesar do júri já se encontrar na posse dos currículos dos concorrentes, como decorre da Ata nº2. Esta alteração de critérios levou a que o júri não viesse a aceitar as declarações de formação profissional do Recorrente, não valorando todas as ações de formação por este apresentadas, contrariamente ao que havia estabelecido na reunião que consta da Ata nº1.
Assim, recorrendo a jurisprudência do próprio do Tribunal e do Supremo Tribunal Administrativo, concluiu que, como forma de garantir os princípios da imparcialidade e da igualdade nos procedimentos concursais, os fatores de ponderação e critérios de ponderação teriam de ser fixados e divulgados antes de os elementos curriculares dos candidatos serem conhecidos.
Tendo o júri fixado critérios após estar na posse dos elementos dos candidatos, este violou o disposto nos artigos 5.º, números 1 e 2, alínea b) do DL 204/98, que estabelece que o concurso obedece aos princípios de, entre outros, igualdade de condições e de igualdade de oportunidades, sendo isso garantido através da divulgação atempada dos métodos de seleção e avaliação, 266.º, número 2 da CRP, e 6.º do CPA (versão anterior, na atual artigos 8.º e 9.º), que se tratam de vícios procedimentais que afetam todo o concurso e demais atos, incluindo o despacho recorrido.
Os juízes acordaram, pois, em conceder provimento ao recurso contencioso, em 28/04/2005.
Estando concluída a análise do Acórdão, passo agora para uma breve exposição da matéria que se cruza com o mesmo.
Em relação ao recurso hierárquico, que encontra previsão normativa nos artigos 197.º e seguintes do CPA, este trata-se, na visão do professor Freitas do Amaral, da "garantia administrativa dos particulares que consiste em requerer ao superior hierárquico de um órgão subalterno a revogação ou anulação de um ato administrativo ilegal por ele praticado ou a prática de um ato ilegalmente omitido pelo mesmo".
Este tipo de garantia tem uma estrutura que se divide entre: o recorrente, que é quem interpõe o recurso; o recorrido, que é o órgão subalterno de cuja decisão se recorre; e o órgão decisório, que é órgão hierarquicamente superior para o qual o particular recorre e que deve decidir o recurso.
Ainda que existam várias espécies de recurso, a mais relevante será a que distingue o fundamento do recurso, que pode ser de legalidade, mérito ou misto. No nosso caso, é evidente que o recurso dirigido ao Ministro tem como fundamento a ilegalidade do ato administrativo impugnado, mas também é possível que se utilize como fundamento a inconveniência do ato impugnado ou até a ilegalidade e inconveniência em conjunto.
O procedimento de um recurso hierárquico inicia-se com a interposição do recurso, que ocorre como prevista no artigo 194.º, números 1 e 2 do CPA, e termina com a decisão, que é a fase que no nosso caso assumiu grande relevância, porque foi o que desencadeou o recurso do Recorrente para o TCAS. Com efeito, a decisão pode ser: de rejeição do recurso, ou seja, de recusa por parte do órgão de o apreciar, nos termos do artigo 196.º; a negação do provimento, como ocorreu no caso do Recorrente, isto é, a emissão de uma decisão desfavorável ao ponto de vista de quem decorre, o que leva à manutenção do ato recorrido; e a concessão de provimento, que ocorre quando a decisão é favorável ao recorrente, implicando a revogação, anulação, modificação ou substituição do ato administrativo recorrido, conforme o que o particular pediu.
Passando agora para a matéria central do Acórdão analisado, o princípio da imparcialidade encontra-se previsto tanto no CPA, no seu artigo 9.º, como na CRP, no seu artigo 266.º, número 2, sendo, por isso, um princípio constitucional que vincula a Administração Pública e limita a sua atuação.
Do artigo 9.º referido, retira-se a ideia de que a Administração, no exercício dos seus poderes, deve atuar e tomar decisões determinadas exclusivamente com base em critérios objetivos de interesse público, não podendo estes critérios ser confrontados com interesses alheios ao desempenho das suas funções.
Este princípio tem uma vertente negativa e uma vertente positiva.
A vertente negativa traduz-se na ideia de que os agentes da Administração não podem intervir em procedimentos, atos ou contratos que estejam relacionados com questões do seu interesse pessoal ou familiar, profissional, económico, etc., sendo aprofundado no artigo 69.º do CPA e com as respetivas consequências no artigo 76.º. Distinguem-se situações de impedimento, em que a substituição do titular do órgão é obrigatoriamente substituído, sendo mais grave, e situações de suspeição, em que a substituição não é automática ou obrigatória, tem de ser pedida através de escusa, mecanismo utilizado pelo titular do órgão decisor, ou pelo particular.
A vertente positiva relaciona-se com o dever que a Administração tem de ponderar todos os interesses públicos e todos os interesses privados legítimos, antes da tomada da decisão. A ausência de ponderação dos diferentes interesses leva à possibilidade de anulação do ato administrativo.
Ainda que no Acórdão referido e na versão anterior do CPA se agrupasse os princípios da imparcialidade e da justiça, hoje em dia o entendimento é que um não se reconduz necessariamente ao outro em qualquer situação, não obstante isso ocorra no caso descrito, porque, tal como o professor Freitas do Amaral explica, podemos ter um órgão da Administração que viola as garantias de imparcialidade, por intervir num procedimento onde não pode intervir, mas que toma uma decisão justa e imparcial, ou vice-versa.
Para concluir, é importante mencionar que, atualmente, se entende que o princípio da imparcialidade é a manifestação do dever que a Administração tem de proteção da confiança dos particulares em relação ao profissionalismo da atuação administrativa. O que o legislador pretendeu com este princípio não foi alcançar decisões mais justas, mas sim garantir que os cidadãos possam ter confiança na Administração para a tomada de decisões.
Quando falamos de concursos, esta ideia é ainda mais clara, porque os princípios que conduzem o procedimento administrativo têm uma função primordialmente preventiva de salvaguarda da isenção e imparcialidade administrativa, pelo que basta o simples risco de lesão da isenção e da imparcialidade para que o ato administrativo que resulta do concurso venha a ser anulado.
Martim Belo
12 de abril de 2024
Análise ao Acórdão nº 0817/07 do Supremo Tribunal Administrativo, de 28/11/2007
A título inicial, é necessário estabelecer como ponto de partida que o presente acórdão analisa um recurso interposto no Supremo Tribunal Administrativo contra uma sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, datada de 23/04/2007. Nesta sentença, o Tribunal negou provimento ao recurso contencioso apresentado pela Recorrente contra um despacho do Diretor Geral do Departamento para os Assuntos do Fundo Social Europeu (DAFSE), datado de 17/05/1995. Este despacho ordenava a devolução de um montante específico em escudos, resultante de um "acerto de contas do financiamento para a realização de uma ação de formação", no âmbito de um pedido feito pela recorrente. Assim, o ato administrativo submetido à apreciação do Tribunal é o mencionado despacho, que reduziu o custo constante do pedido de pagamento de saldo relativo à ação de formação profissional realizada pela recorrente, conforme Pedido 2 do PO 10 (904001P1). Esta redução impôs a adoção de uma nova estrutura de custos e financiamento, obrigando a recorrente a devolver verbas.
Entre os diversos argumentos apresentados pela recorrente no recurso, destacam-se aqueles que alegam a "falta de fundamentação do ato impugnado" e a má interpretação e aplicação do antigo art.º 125º CPA (antes da reforma de 2015), atualmente art.º 153º CPA, por parte do TAF de Sintra na sentença recorrida. A recorrente argumenta que a fundamentação do ato confunde o nível de acesso e o nível de saída da formação, o que constitui um erro contra legem, violando o art.º 125º do CPA (atual art.º 153º CPA). Adicionalmente, a auditoria, base da fundamentação, revela-se falha de elementos considerados necessários pelos seus autores, e a sentença, ao julgar o contrário, decide de forma errada e contra a lei, nomeadamente o art.º 125º do CPA. A recorrente conclui que a falta de relação entre o ato impugnado e outro ato mencionado no parecer constitui fundamentação obscura e contraditória, equivalente à sua ausência. Assim, a sentença de indeferimento do recurso pelo TAF de Sintra é vista pela recorrente como incorreta face a estes fundamentos.
Outra questão levantada pela recorrente é a possível violação do dever de imparcialidade por parte da Administração, ao utilizar a mesma entidade auditora por duas vezes consecutivas no procedimento administrativo. Segundo a recorrente, isto viola as garantias de imparcialidade e constitui um vício de violação de lei. A recorrente alega que o Tribunal não apreciou corretamente os factos, incorrendo em violação e omissão do dever de pronúncia.
Analisando o primeiro argumento da recorrente, é necessário examinar os elementos do ato administrativo, particularmente no que concerne à "fundamentação" do mesmo. Conforme teorizado pelo Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, um ato administrativo é "o ato jurídico unilateral praticado no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou outra entidade pública ou privada habilitada por lei, que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta", distinguindo-se do regulamento, de caráter geral e abstrato. De acordo com o art.º 148º CPA, apenas aos atos com eficácia externa se aplica o regime do referido Código. Na sua estrutura, o ato administrativo tem elementos subjetivos, formais, objetivos e funcionais. Focando nos elementos formais, estes referem-se ao "modo pelo qual se exterioriza ou manifesta a decisão voluntária em que o ato consiste", sendo todos os atos administrativos dotados de uma forma associada (v. art.º 150º CPA). Além da forma, são exigidas determinadas formalidades por lei, que podem ser anteriores, contemporâneas ou posteriores ao ato, e que visam garantir a correta formação da decisão administrativa em conformidade com o interesse público e os direitos dos particulares.
Segundo o art.º 151º, nº 1, CPA, os atos administrativos devem conter um conjunto de "menções obrigatórias" quando redigidos por escrito. Em particular, a fundamentação é exigida "quando exigível" (v. art.º 151º, nº 1, d), CPA). De acordo com o art.º 152º, a), CPA, o dever de fundamentação é obrigatório sempre que o ato vise "impor ou agravar deveres ou encargos", como é o caso do despacho em questão, que ordenava a devolução de um montante pela Recorrente. Na ordem jurídica, "todas as formalidades prescritas por lei são essenciais", e a sua omissão resulta na ilegalidade do ato administrativo, vício alegado pela Recorrente neste recurso.
Na doutrina do Professor Doutor Freitas do Amaral, as preterições de formalidades podem ser "insupríveis" ou "supríveis". No caso do dever de fundamentação, este é insuscetível de preterição, sendo essencial para garantir a segurança jurídica e a defesa dos particulares. Na jurisprudência, "a fundamentação do ato administrativo é um conceito relativo, cuja densidade varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto", mas deve permitir que o destinatário compreenda o raciocínio seguido pelo autor do ato. A fundamentação deve possibilitar a impugnação do ato com base nos motivos apresentados e facilitar o controlo pelos órgãos competentes.
De acordo com o art.º 153º, nº 1, CPA, a fundamentação de um ato administrativo requer determinados requisitos, cuja ausência pode resultar em ilegalidade por vício de forma, anulável nos termos do art.º 165º, nº 2, CPA. A recorrente alega que a auditoria "revela-se falha de elementos tidos pelos seus autores como necessários e indispensáveis à conclusão". No entanto, o Tribunal considera que tal argumento demonstra apenas desacordo com a fundamentação, sem comprovar a falta de clareza ou coerência na mesma. O Tribunal entende que "o ato impugnado possui todos os requisitos impostos por lei", e que a matéria alegada poderia indicar um erro nos pressupostos, mas isso não foi demonstrado pela recorrente.
Por fim, quanto à alegada violação do antigo art.º 44º, nº 1, d), atual art.º 69º, nº 1, d), CPA, a recorrente argumenta que a empresa auditora, embora não sendo titular de órgão ou agente da administração, pratica um ato ao serviço da Administração, tornando-se parte da fundamentação do ato definitivo e executório. A recorrente sustenta que a intervenção da auditora pela segunda vez no procedimento, como perito, viola o princípio da imparcialidade. De acordo com a doutrina do Professor Doutor Freitas do Amaral, o princípio da imparcialidade exige que a Administração atue de forma isenta e equidistante em relação aos interesses em jogo. Este princípio possui uma dimensão positiva, que exige a consideração de todos os interesses relevantes, e uma dimensão negativa, que impede a intervenção de titulares de órgãos ou agentes administrativos em questões de interesse pessoal.
No caso em concreto, a recorrente alega que a segunda intervenção da auditora viola as garantias de imparcialidade. No entanto, o Tribunal considera que "não se antolha que garantias de imparcialidade possam ter sido quebradas", pois a auditoria foi realizada por uma entidade independente, cujo trabalho foi analisado e assumido por agentes do DAFSE. O Tribunal sustenta que a decisão que produziu efeitos jurídicos na esfera da recorrente pertenceu inteiramente ao DAFSE.
Embora pudesse parecer que a intervenção repetida da mesma entidade auditora pudesse comprometer a imparcialidade, o Tribunal considera que a análise subsequente por outra entidade independente garante a integridade do procedimento. A existência dessa análise subsequente e os pareceres emitidos reforçam a segurança e a transparência do processo, afastando a suspeita de parcialidade ou favorecimento.
DO AMARAL, Diogo Freitas. Curso de Direito Administrativo Vol .I, 4º Edição. Almedina, 2015.
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. Direito Administrativo Geral, Introdução e princípios fundamentais, Tomo I. Dom Quixote.
José Lopes, subturma 10, nº68244
Análise ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28/02/2020
Processo: 674/18.6BECBR
Em primeiro lugar, é de referir que concordo com a fundamentação da decisão.
De facto, a primeira decisão que rejeitou o pedido de créditos do autor e ordenou a devolução dos montantes recebidos foi proferida em 2016 pelo Presidente do Conselho de Gestão do FGS, após o interessado ter exercido o direito de audiência prévia.
Dessa decisão, o autor reclamou para o Presidente do CDSS de Coimbra, que também indeferiu a reclamação, utilizando os mesmos fundamentos que levaram à decisão do Presidente do Conselho de Gestão do FGS.
Ou seja, este ato de indeferimento da reclamação é meramente confirmativo do primeiro, sem qualquer elemento novo que justifique a sua autonomia.
Além disso, a notificação enviada ao autor para devolver as quantias recebidas é apenas uma consequência da decisão de indeferimento do pedido, tratando-se de mera execução da decisão tomada.
Este entendimento está em conformidade com o artigo 53.º do CPTA.
Nos termos do n.º 1 do referido artigo, "Não são impugnáveis os atos confirmativos, entendendo-se como tal os atos que se limitem a reiterar, com os mesmos fundamentos, decisões contidas em atos administrativos anteriores."
Assim, o ato do Diretor do CDSS de Coimbra, que indeferiu a reclamação do autor, por não apresentar qualquer novo fundamento face à decisão anterior do Presidente do FGS, é um ato meramente confirmativo e, portanto, não impugnável.
Refira-se que o autor poderia ter impugnado esse primeiro ato que indeferiu o seu pedido de pagamento de créditos.
Por outro lado, o n.º 4 do mesmo artigo menciona que "Os atos jurídicos de execução de atos administrativos só são impugnáveis por vícios próprios, na medida em que tenham um conteúdo decisório de caráter inovador."
Ora, a notificação limita-se a comunicar ao autor a sua obrigação de restituir quantias, conforme determinado pela decisão do Presidente do FGS, sem qualquer caráter inovador, pelo que também não é impugnável.
Como mencionado na decisão em análise, em relação aos atos de mera execução, é entendimento pacífico que os mesmos "não têm, geralmente, uma carga dispositiva e impositiva natural e imanente, não têm capacidade autónoma para lesar direitos e interesses alheios, nem possuem força lesiva própria", sendo que "a lesão, quando existe, radica no ato exequendo", razão pela qual tais atos são, em princípio, inimpugnáveis (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05/12/2002, proc. n.º 07/02, publicado em www.dgsi.pt).
Acrescentamos uma nota em relação a uma questão também discutida na decisão, que diz respeito ao facto de a notificação da decisão que indeferiu a reclamação mencionar que o autor poderia reclamar ou impugnar a decisão, em desacordo com o decidido no acórdão, com o qual concordamos.
A questão é saber se essa informação comunicada ao autor impediria o tribunal de considerar o ato como não impugnável. O tribunal respondeu negativamente, e concordamos com essa resposta.
Com efeito, é verdade que o artigo 58.º do CPTA, após referir no número 1 que o ato anulável deve ser impugnado, no caso, no prazo de 3 meses, acrescenta no número 2, alínea b), que também pode ser impugnado no prazo de 3 meses após cessar o erro do cidadão normalmente diligente, quando esse erro tiver sido induzido pela própria administração.
Este regime refere-se apenas ao prazo de impugnação, o que sucederia, por exemplo, se a notificação indicasse um prazo de 6 meses em vez de 3.
Em suma, no caso, não está em causa o prazo de impugnação – o que poderia justificar a aplicação deste regime legal – mas a possibilidade de o ato ser impugnado. E, uma vez que o autor foi sempre informado da possibilidade de impugnar os atos anteriores e estava assistido por um advogado, não existe fundamento para que o princípio da confiança tornasse o ato impugnável.